Em julho de 2019, Alessandra Gutierrez recebeu uma ligação um tanto surpreendente. Do outro lado do Atlântico, na Europa, o filho Guillermo chamava para dar notícias do sucesso da viagem dele e do irmão mais velho, Martin. Os dois haviam deixado Florianópolis semanas antes e passado por Portugal, onde visitaram os avós paternos, e agora estavam em Paris, com os primos. Ale, como é conhecida, atendeu com um sorriso de satisfação no rosto a chamada em vídeo. Ótima notícia: cada vez que uma mãe sorri, o mundo fica um lugar um pouco melhor de se viver. 

No caso de Ale, a alegria do momento significava um fruto a mais – e dos mais saborosos – de anos de dedicação, companheirismo, algum sofrimento e muita batalha. Gui, como a mãe o chama, é surdo e apresenta um quadro de síndrome do espectro do autismo. Viagens de avião, encontros com pessoas desconhecidas e a exposição a hábitos  diferentes são mudanças que podem gerar insegurança em qualquer pessoa. No caso de autistas, que costumam valorizar rotinas bem estabelecidas, são desafios enormes. “O gesto de ‘libertar’ o Gui foi um sacrifício, cercado de inseguranças para mim. Mas senti que a criança que saiu daqui voltou poucos dias depois transformado em um adolescente. Foi muito importante para ele ganhar mais maturidade”.

O autismo é um enigma coberto por um véu de dúvidas para médicos e pesquisadores. Não há causas identificadas nem um tratamento específico. A bem da verdade, a síndrome abrange casos absolutamente diversos entre si, o que torna a busca por tratamentos uma aposta no escuro, marcada por muita tentativa e erro. Pior: apesar de bastante comum, ainda é motivo de preconceitos variados, o que causa sofrimento extra para pais e crianças.

“Quando descobri que meu filho era autista, abandonei tudo. Abandonei a carreira, os sonhos e me abandonei como mulher”, diz Ale. O plano de voltar ao mercado de trabalho foi deixado de lado, substituído por um esforço em busca de tratamentos e conhecimento sobre o assunto. Foram horas de leitura, idas a diferentes médicos, fisioterapia, aprendizado da linguagem de libras e busca de medicação.

Além do desgaste físico, alguns estágios do autismo incluem um sintoma emocionalmente desgastante para os pais: a dificuldade da criança em receber carinho e demonstrar amor de forma tão espontânea quanto outros meninos ou meninas. Ale esperava Gui dormir para abraçá-lo sem enfrentar resistência. E sorriu outra vez – e o mundo melhorou mais um pouco – quando recebeu do filho um bilhete com o desenho de um coração escrito mamãe. 

Os filhos também tiveram peso importante na atual carreira profissional de Alessandra. Durante todo o período de maior angústia diante das dificuldades para cuidar dos meninos, a dança foi essencial para manter sua estabilidade emocional. Na época, renovava as energias nas aulas de flamenco, dança característica da região da Andaluzia que tem origem na cultura dos ciganos e dos árabes. Caracterizada pelo canto acompanhado por palmas, violão, sapateado e dança, o flamenco traz músicas sobre temas como a luta, a esperança e o orgulho de povos vítimas de preconceito. 

De estudante, Ale tornou-se professora quando montou um estúdio em casa e passou a dar aulas para as amigas, que há tempos insistiam nisto. Assim, ela poderia se dedicar à sua paixão sem precisar deixar quem mais amava, os filhos. 

Gui interage com as alunas e amigas da mãe no estúdio e até já se apresentou com a mãe no palco do Teatro Álvaro de Carvalho (TAC). “Ele entrou bem no começo, com tanta vergonha que enterrou o chapéu na cabeça. No final da apresentação, convidei Gui para dançar conosco novamente.  Quando percebi, havia várias crianças autistas dançando também. Foi lindo!”, conta Alessandra. 

Neste mesmo espetáculo, “O aviador no planeta de Cascaes”, toda a família subiu ao palco. Martin, o filho mais velho, interpretou um dos personagens e ajudou a cuidar das outras crianças nos bastidores. O padrasto dos meninos, Rodrigo Rosa, que é um dos maiores estimuladores de Gui, narrava a história, assim como faz em quase todas as peças. Aliás, o apoio de Rodrigo e Martin sempre foi fundamental para Ale conseguir desenvolver seu trabalho e ajudar o filho caçula.

Hoje ela é gestora de um espaço de arte e lazer onde mulheres aprendem dança flamenca, recebem apoio emocional e trabalham a autoestima. Também criou um projeto, batizado Dança Solidária, com apresentações de alunas do estúdio com renda revertida para instituições beneficentes.

*Esta história faz parte de uma série em homenagem ao Dia das Mães, com personagens escolhidas pelo Iguatemi Florianópolis.